CNJ impulsiona Política Judiciária de Atenção às Vítimas com novas publicações

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Maria Dalva Correia completou 70 anos nesta segunda-feira, mas não estava comemorando. Ela é mãe de Thiago da Costa Correia da Silva, assassinado em 2003 por forças policiais na ação conhecida como Chacina do Borel. Thiago, 18 anos, era casado, tinha uma filha recém-nascida e trabalhava como mecânico. Isso não impediu que fosse assinado com cinco tiros. “Se eu não lutasse por Justiça para o meu filho, eu estaria tão morta quanto ele”, afirmou.

Maria Dalva reforça que nunca deve ser papel da polícia julgar ou executar, apenas prender, lembrando emocionada de um exemplo de revitimização que pode acontecer no Judiciário. “No tribunal meu filho recebeu o tiro final ao me perguntarem: ele fumava maconha? Ele já foi preso?”. Dalva representou a Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência e o Grupo de Mães de Vítimas nesta segunda-feira (18), em evento organizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) para o lançamento de duas publicações que reforçam a Política Judiciária de Atenção e Apoio às Vítimas de Crimes e Atos Infracionais.

Conheça as publicações:

• Guia para a Estruturação da Política Judiciária de Atenção e Apoio às Vítimas
• Cartilha para Vítimas de Crimes e Atos Infracionais

Instituída pela Resolução CNJ n° 253/2018 e atualizada pela Resolução nº 386/2021, a política trouxe como uma das principais inovações a proposta de criação de Centros Especializados de Atenção às Vítimas nos tribunais – o TJRJ foi o primeiro tribunal a criar um Centro Especializado de Atenção às Vítimas (CAAV) no país.

“O Direito Penal é o melhor instrumento que o Estado tem para tutelar direitos fundamentais”, afirmou o conselheiro e presidente da Comissão Permanente de Políticas de Prevenção às Vítimas de Violências, Testemunhas e de Vulneráveis do CNJ, Marcio Luiz Coelho de Freitas. Mas, segundo ele o Judiciário precisa ter olhos e ouvidos para entender as pessoas que foram vítimas de crimes. “Não podemos vê-las apenas como pessoas que podem trazer novos dados no processo, mas como sujeitos que precisam ter direitos garantidos, inclusive de acesso à informação, e acolhidos pela justiça”.

Para o presidente do TJRJ, desembargador Ricardo Rodrigues Cardozo, as publicações lançadas contribuem para que a atenção às vítimas se torne cada vez mais usual. “Nos processos penais, a sociedade se preocupa muito com a punição – que tem sua importância é uma função exclusiva do Estado – mas hoje não é mais possível não se preocupar também com a atenção às vítimas”.

A Política Judiciária de Atenção às Vítimas surgiu após uma ação do Observatório dos Direitos Humanos do CNJ em contato com mães e outros familiares que perderam seus filhos por conta da violência urbana, muitas vítimas das próprias forças de segurança pública, como relatou a secretária-geral do CNJ, a juíza Federal Adriana Alves dos Santos Cruz, que participou da redação da segunda resolução emitidas pelo Conselho. Ela defende um olhar global para a situação das vítimas. “Essas pessoas não são vítimas apenas no processo criminal, mas também são vítimas quando batem à porta da previdência social e encontram dificuldades para conseguir um benefício; quando uma avó não consegue a guarda de um órfão por conta de um feminicídio, por exemplo”.

A juíza auxiliar da Presidência Karen Luise Vilanova Batista de Souza informou que o objetivo agora é percorrer o país para estimular um debate mais aprofundado sobre como o Judiciário pode qualificar sua atuação neste campo. “A partir do CNJ temos a intenção de atuar com todos os tribunais para o fortalecimento da pauta dos Direitos Humanos, e entre elas a atenção às vítimas. Para isso vamos estimular, acompanhar e monitorar a construção de políticas e dos centros de atenção às vítimas”.

 

A cartilha e o guia

As duas publicações têm públicos diferentes. Enquanto o Guia para a Estruturação da Política Judiciária de Atenção e Apoio às Vítimas é direcionado para tomadores de decisão no Poder Judiciário, com instruções para auxiliar na construção de políticas e centros de atenção às vítimas, a Cartilha para Vítimas de Crimes e Atos Infracionais foi pensada para a população geral, em especial aquelas pessoas que tenham sido vítimas de crimes e atos infracionais.

A elaboração foi feita como parte das atividades do programa Fazendo Justiça, coordenado pelo Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do CNJ em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para acelerar transformações no campo penal e socioeducativo.

A antropóloga, consultora do PNUD para o Guia para a Estruturação da Política Judiciária, Natasha Elbas Neri, comentou sobre o processo de pesquisa, que envolveu grupos focais com 56 pessoas afetadas por representantes da população negra, da população LGBTI, vítimas de violência policial e familiares de vítimas de tortura e maus-tratos nos Sistemas Carcerário e Socioeducativo, além de especialistas, tanto com atuação direta no apoio às vítimas como operadores do direito.

Em suas pesquisas ela afirma ter encontrado diversas equipes preparadas para superar questões de revitimização e vitimização secundária. “Os tribunais precisam olhar para dentro, porque já existem experiências que realizam acolhimentos e escutas em varas de violência doméstica, de família ou na justiça restaurativa”.

Consultora do PNUD para a elaboração da Cartilha, Andressa Freitas afirmou que existe uma dificuldade de as pessoas se identificarem como vítimas, seja em decorrências de situações de sofrimento, medos, vergonhas e situações silenciamento. “O objetivo da Política Judiciária nessa temática deve ser “transformar as experiências negativas de supressão de direitos, em experiências de cidadania plena e reconhecimento da sua voz”. Para atingir isso ela lista a necessidade de acolhimento e garantia de acesso às informações durante todo o processo.

 

O Centro de Atenção às Vítimas

A pioneira experiência do Centro de Atenção às Vítimas (CAAV) do TJRJ foi apresentada durante o evento. Um vídeo destacou seus principais números, como os 440 atendimentos realizados entre janeiro e novembro de 2023. Supervisora do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema Socioeducativo do TJRJ e do CAAV, desembargadora Suely Lopes Magalhães, comentou que sempre encontrou apoio institucional para as ações de atenção às vítimas, e que por isso foi possível criar o serviço em tempo recorde. “As publicações lançadas hoje vão permitir mais uma forma de orientação para as pessoas que precisam dos serviços de atenção às vítimas”.

A preocupação com a política de atenção às vítimas está presente em outros atores do Sistema de Justiça do estado, como foi abordado no evento pelo procurador-geral de Justiça do Rio de Janeiro Luciano Oliveira Mattos de Souza. “Neste biênio, nós criamos no Ministério Público uma coordenadoria específica para esse fim, que ajuda na supervisão dos nossos Núcleos de Atenção às Vítimas (NAV)”. Já o coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPJR), André Luís Machado de Castro, destacou decisões recentes do TJRJ no caso Ágatha Félix que utilizaram os padrões internacionais de classificação de vítimas e ainda apontou como um desafio “superar a dificuldade no acesso à informação por parte das vítimas e mesmo informações em linguagem simplificada”.

“É preciso construir um garantismo penal, que assegure os direitos integrais, não apenas para os autores dos crimes, mas que se estenda às pessoas que foram lesadas por esses crimes”, defendeu o presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2), desembargador Guilherme Calmon Nogueira da Gama. Ele anunciou que atenção às vítimas será um dos eixos temáticos no 1ª Jornada de Direitos Humanos que o TRF2 realizará em 2024.