Para onde vai quem comete crime e sofre de doença mental

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Para onde vai quem comete crime e sofre de doença mental

Na manhã de 2 de fevereiro de 2014, no Rio de Janeiro, a família do cineasta Eduardo Coutinho viveu uma tragédia. Durante um surto psicótico, Daniel, seu filho, matou o pai a facadas e tentou assassinar a mãe, que se escondeu no banheiro para não ser morta. Um ano depois, Daniel foi absolvido sumariamente.

O juiz o considerou esquizofrênico, inimputável, ou seja, incapaz de responder judicialmente pela morte do pai. Em um hospital de custódia e de tratamento psiquiátrico (HCTP), Daniel cumpre medida de segurança, espécie de sanção penal imposta a pessoas com doenças mentais. Atualmente, segundo o Sistema Geopresídios - Cadastro Nacional de Inspeções em Estabelecimentos Penais, mantido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) -, há 22 hospitais de custódia em funcionamento no Brasil. Os números por estado podem ser acessados aqui.

Como Daniel, outras 3.134 pessoas cumprem medidas de segurança no Brasil, de acordo com dados coletados no sistema Geopresídios em 8/10/2018. Incapazes de responder pelos seus atos, de acordo com a lei, elas precisam de tratamento, e não de punição. O Código Penal estabelece que o prazo mínimo de internação a ser estabelecido pelo juiz é de um a três anos, mas não prevê período máximo de duração.

Titular há dois anos da Vara de Execução de Penas e Medidas Alternativas (Vepema) de Porto Alegre, o juiz Luciano Losekann explica que os processos envolvendo essas pessoas correm normalmente e, ao longo da tramitação, se instaura o incidente de insanidade mental. “Trata-se de um exame médico legal para comprovar a condição de transtorno mental e ainda se foi esse problema que desencadeou a prática do delito”, afirma o magistrado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS). Assim que o processo é encerrado, o juiz determina por quanto tempo a pessoa ficará internada em um hospital de custódia.

O Rio Grande do Sul conta com um estabelecimento para abrigar as pessoas que têm de cumprir medidas de segurança internados, o Instituto Psiquiátrico Forense (IPF). Atualmente, o prédio passa por reforma, orçada em R$ 4,8 milhões. Os recursos foram arrecadados pela Corregedoria-Geral de Justiça do TJRS junto a magistrados da execução criminal, responsáveis pela gestão das penas pecuniárias. Essas penas são aplicadas em substituição às privativas de liberdade, em casos de menor gravidade. Em 2016, as péssimas condições da unidade fizeram Luciano Losekann interditar totalmente o local. Falta de higiene e insalubridade em diversas áreas foram alguns dos problemas constatados durante uma inspeção. Os pacientes estavam responsáveis pela limpeza de diversas unidades e pelo preparo de seus próprios alimentos. “Os internos não têm condições pessoais, e tampouco segurança, para manusear facas, por exemplo”, lembra o magistrado gaúcho.

Desde que iniciou o trabalho na Vepema, Losekann realiza processo gradual de desinternação das pessoas que estão no IPF. Em dois anos, o número de pacientes passou de 440 para 166. Trata-se de uma tendência adotada em diversos países e seguida também pela Agência Nacional de Saúde. A ideia é que, depois de equilibrada mentalmente, a pessoa passe a receber tratamento ambulatorial e permaneça em uma casa de acolhimento ou com a família.

Resolução CNJ n. 113 prevê, em seu art. 17, que “o juiz competente para a execução da medida de segurança, sempre que possível buscará implementar políticas antimanicomiais, conforme sistemática da Lei n. 10.216”. A norma, também conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, instituiu novo modelo de tratamento aos transtornos mentais no País.

 

Trabalho premiado

São Paulo é um dos estados que, na última década, conseguiu grandes avanços na administração do cumprimento de medidas de segurança. Em novembro de 2009, quando a 5ª Vara de Execuções Criminais Central foi especializada, iniciou-se um trabalho com o objetivo de acelerar e qualificar as decisões. Convênio firmado entre o Tribunal de Justiça de São Paulo e as secretarias estaduais de Saúde e de Administração Penitenciária permitiu a realização de mutirões de perícias. “Naquele tempo, o doente mental ficava esquecido na última cela do presídio e não havia efetivo andamento do processo”, afirma Paulo Sorci, titular da 5ª Vara de Execuções Criminais Central.

À época, 700 pessoas aguardavam vagas para internação. Em dois anos, foi possível reduzir sensivelmente a lista de espera. Hoje, a carência é de apenas 150 leitos. A reinauguração de parte do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico I, que ocorrerá em novembro, vai permitir zerar a demanda, uma vez que a unidade passará a oferecer 400 vagas.

Para aqueles que não necessitam de internação em HCTPs, é feito o direcionamento ao tratamento ambulatorial. Três unidades – Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico I, Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico II e Hospital de Custódia de Tratamento Psiquiátrico Dr. Arnaldo Amado Ferreira e Centro de Readaptação Penitenciária de Taubaté  – recebem as pessoas em cumprimento de medidas de segurança. Por ano, em média, são feitas 500 perícias.

Atualmente, o sistema carcerário paulista abriga quase a metade das pessoas sem cumprimento de medidas de segurança no Brasil, pouco mais de 1,2 mil pessoas. Sorci afirma que a partir da parceria com o Poder Executivo e da organização do trabalho de uma equipe multidisciplinar, os resultados positivos apareceram em pouco tempo. “Algumas pessoas aguardavam havia mais de cinco anos, em unidades prisionais comuns, a realização de perícia, para possível internação em hospital de custódia”, explica Sorci. O tempo de reavaliação dos pacientes caiu de ano para meses.

O sucesso da ação garantiu, em 2015, a conquista do Prêmio Innovare na categoria juiz. O psiquiatra forense e professor da faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo Rafael Bernardon, que integra a equipe do projeto, diz que o Brasil conta com algumas ilhas de excelência, a exemplo de São Paulo e Goiás, estabelecidas na maioria das vezes por iniciativas individuais, não como política de Estado. Apesar de considerar que a realidade brasileira ainda está bem distante do conceito de psiquiatria moderna, Bernardon diz que houve avanços. “Pelo menos essa triagem inicial fazemos com algum sucesso.”

Com o processo de realização de perícias consolidado, iniciou-se o trabalho para a criação de uma central de atenção ao egresso e família. A unidade oferece assistência direta, promove o estreitamento dos vínculos familiares, a construção e ampliação da rede social de apoio, parcerias com órgãos governamentais ou não e projetos que priorizam a capacitação profissional e a geração de renda. O centro recebe encaminhamentos dos hospitais de custódia.

 

 

Carência

Enquanto alguns estados enfrentam problemas de toda ordem nos espaços destinados a pessoas com transtornos psíquicos, outras unidades da Federação nem sequer contam com HCTP. É o caso do Mato Grosso do Sul, onde esses pacientes são acomodados em alas médicas de presídios comuns, administrados pelo Estado. “Não temos hospitais nem alas psiquiátricas para atender essas pessoas. Penso inclusive em acionar a Corte Interamericana de Direitos Humanos para denunciar a situação”, diz Cesar de Souza Lima, juiz titular da 3ª Vara Criminal de Dourados.

Atualmente, o magistrado sul-mato-grossense acompanha os casos de 22 pessoas internadas na Penitenciária Harry Amorim Costa, que abriga mais de 2.500 presos. Cesar afirma que, acolhidos em estabelecimentos penai comuns, não é raro que o quadro dos pacientes se agrave. O juiz diz que pode haver inclusive o agravamento da condição dos pacientes. “Muitos são extremamente violentos e perigosos, alguns tentam o suicídio. Essas pessoas precisam de tratamento mais específico”, afirma.

Assim como o colega do Rio Grande do Sul, o juiz do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS) estuda formas de utilizar recursos provenientes das penas pecuniárias para melhorar o atendimento aos pacientes. A ideia é que o Ministério Público do estado dê entrada em uma ação civil pública para autorizar o uso desse dinheiro, a fim de contratar um psiquiatra e garantir atendimento digno a quem tem de cumprir medidas de segurança em presídios. “O Poder Judiciário tem que se ajustar à inércia do Executivo.”

Além de profissionais de saúde, Amorim Costa busca parcerias para oferecer atividades lúdicas e preencher o tempo dos pacientes. Ele conta que muitas dessas pessoas são abandonadas pela família, uma vez que os crimes costumam ser cometidos contra alguém próximo, como mãe, pai ou irmãos. Os estabelecimentos de custódia e tratamento psiquiátrico não recebem apenas pacientes em cumprimento de medida de segurança. Nessas unidades, também é possível encontrar pessoas internadas em situação temporária, pessoas internadas para a produção de laudo pericial e pessoas internadas transferidas de presídios.

No Rio de Janeiro, o Tribunal de Justiça também trabalha para garantir que os pacientes abrigados nas duas unidades em funcionamento no estado – HCTP Henrique Roxo e HCTP Roberto de Medeiros – possam manter os vínculos com familiares. Hoje, há 180 pessoas custodiadas nesses hospitais.

Juíza titular da Vara de Execuções Penais do Rio de Janeiro, Roberta Barrouin Carvalho de Souza afirma que equipes multidisciplinares atuam para garantir a manutenção dos vínculos afetivos dos pacientes com familiares e amigos. A magistrada lembra de casos de pessoas internadas há mais de 20 anos, sem qualquer contato com o mundo fora do hospital. “Nos últimos dois anos, demos início a um trabalho gradual de enxugamento da população internada nos hospitais de custódia”, afirma.

 

 

Na busca por um novo modelo para avaliar as condições desses pacientes, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro desenvolveu ação que busca justamente promover uma análise mais completa dos casos, que vai muito além do tradicional exame de verificação de periculosidade. “Criamos o Exame Multiprofissional e Pericial de Avaliação Psicossocial (EMAP), que envolve não apenas um perito, mas toda a rede de atenção psicossocial, além da família do paciente”, informa a defensora pública Patrícia Magno.

Durante o processo de avaliação da possibilidade de liberação do paciente, é feito amplo trabalho para garantir que a pessoa não será largada à própria sorte. “Não se trata de abrir a porta e colocá-la na rua. Precisamos saber quem vai recebê-la, onde ela vai morar caso a família não a queira de volta, como se dará a continuidade do tratamento”, enumera Patrícia. Esse exame não indica apenas se a pessoa com transtorno mental é ou não perigosa, mas se tem ou não condição clínica de ser desinternada e continuar o tratamento em meio ambulatorial.

Com todos os dados em mãos, é marcada uma audiência de desinternação, que conta com a participação de profissional do HCTP (das áreas de psicologia, assistência social, enfermagem, entre outros), do Ministério Público, da Defensoria Pública, além de familiares e de representante do centro de atenção psicossocial (CAPS) onde a pessoa dará continuidade ao acompanhamento médico.

Aos poucos, o esforço tem garantido que grande parte das pessoas possa retornar à sociedade. Em 2016, foi possível encerrar as atividades do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho, no Rio. Na opinião de Patrícia Magno, o fechamento da unidade é simbólico por tratar-se do mais antigo do país, inaugurado em 1921.

 

Foto: Luiz Silveira/Agência CNJ
Fonte: www.cnj.jus.br